top of page

Cotidiano

Crônicas

Cala a boca porque eu que pago teu salário

Cala a boca porque eu que pago teu salário

525, UFJF. 7h40 da manhã. Lotado já no ponto do Jesuítas.

Na parada seguinte, alguns homens, nervosos, gritam do lado de fora para que o trocador mande as pessoas “darem um passinho para trás”. O ônibus para. Um cheiro de irritação enche o ar saturado de gás carbônico. Um homem, não sei como, consegue colocar metade do corpo para dentro do ônibus e berra:

“Não tem ninguém cheirando mal aqui não, gente! Tá todo mundo querendo ir para a faculdade, ir para o trabalho! Vamos dar um passo pra trás aí! Ô motorista! Ô trocador!”

Outro homem:

“Anda logo trocador, faz alguma coisa!”

E xingam.

O trocador, irritado, enrijece o semblante e lança nos passageiros seu estado emocional ocre.

Um estudante transgride os níveis de irritação e desmedidamente xinga e briga com o trocador. Começa o embate. Eles estão próximos o bastante para alcançarem um ao outro e partirem para o quebra pau. E eu estou no meio.

Eis que o estudante lança sua pior arma: a discriminação.

“E você cala a sua boca porque EU é que pago o seu salário.”

Imediatamente me vem um aperto no peito. Como se o soco que os dois quisessem trocar entre si, tivessem atingido minha alma. Aquelas palavras parecem que foram pra mim.

Viro-me para o trocador, coloco a mão em seu ombro e peço para que ele se acalme. Acontecesse o que acontecesse, quem sofreria a pior das consequências seria o trabalhador daquele coletivo. E lá estava eu tentando conscientizá-lo disso.

Conscientizá-lo não de que “o mundo é dos quietos” e que ele deveria se “ostrar” diante de injustiças. Não também de que o lugar dele fosse inferior. Minha tentativa era de evitar os efeitos do mundo do estudante sobre o do trocador. Porque no mundo do estudante, o trocador é realmente inferior. E o mundo do estudante é o mundo dos protegidos. Portanto, proteger o trocador da proteção do outro, era ali a minha tentativa. Felizmente, obtive sucesso com a ajuda de uma senhora que amavelmente fez o mesmo gesto de acalmar e tocar o trabalhador.

Ela sai. Eu fico. Só, ainda que em um ônibus lotado. Não sei porquê nem de onde surge, mas sobe pela minha garganta um fogo ardente. Ele se condensa em meu cérebro e extravasa em minhas retinas em forma líquida. Gotas de água descem no meu rosto quente. Não consigo segurar. Não consigo! Não consigo! Aquelas palavras foram para mim. Aquele mundo caio sobre o meu. E o pior era pensar que esse mundo, do estudante, era mais próximo de mim do que o mundo do trocador. Sinto minhas bochechas enrubescerem de vergonha. Vergonha por fazer parte dessa classe. Vergonha por deixarmos criarem-se seres que pensam dessa forma. Vergonha por ele estar próximo à mim, mas tão longe de seu próprio absurdo.

Não consigo segurar! Não consigo! Não consigo! Tanto ódio! Tanto a Temer.

 No fim, quem vem a me consolar, é o trocador.

Ana Livia Faria de Medeiros/Maio 2016

bottom of page